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Bicho eterno de cidades com lembranças

As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Nem o povo. Nem as matas. Nem mesmo os instrumentos. E a gente gosta muito de tudo que compõe e gorjeia nesta pátria! A estampa Terra Brasilis é um suco de brasilidade. Convidamos o escritor Dani Furlan para contar histórias sobre ela!


• 5 mins de leitura
Bicho eterno de cidades com lembranças

Convidamos um escritor-cliente muito querido para escrever histórias sobre a estampa Terra Brasilis. Dani Furlan é jornalista, roteirista, storyteller digital e autor dos livros "De Primeira Viagem: Personagens da Europa", "Momentos da Rotina" e "Dani e a Escrita Criativa".


Talvez eu goste de cidades grandes.

Apesar do céu acinzentado e do barulho de buzinas e motores de carros, as metrópoles de cimento costumam ser centros culturais relevantes e proporcionam mais oportunidades de empregos do que municípios menores (pelo menos é o que reza a lenda do cruel e fracassado sistema capitalista brasileiro).

Contudo, por maiores e mais prósperas que possam ser, elas não possuem a mesma essência afetiva do interior.

Existem, por exemplo, quatro elementos característicos do Brasil que estão presentes em quase todas as cidades do país: igrejas, animais, comidas típicas e plantas.

Os brasileiros têm inúmeras experiências com esses quatro elementos. Os moradores e frequentadores de cidades pequenas, no entanto, vivem e representam essas referências nacionais com muito mais intensidade.

Não por acaso, todos os interioranos possuem histórias de vida inesquecíveis envolvendo igrejas, animais, plantas e comidas típicas. Mesmo quando não estão em seus locais de origem.

Como um bom jovem (ou velho, dependendo de quando você estiver lendo esse texto) do interior, resolvi relembrar quatro das que vivenciei para comprovar essa tese:

Igreja

Eu ganhei meu primeiro sorteio em uma igreja do interior. Em uma cidade de apenas 5 mil pessoas.

Qual foi o prêmio? Uma bíblia.

Meio óbvio e pouco atrativo, especialmente para uma criança de sete anos.

No entanto, aquela foi a minha primeira e última vitória em algo do tipo.

Rezo para que um dia eu seja sorteado novamente, preferencialmente em alguma premiação que envolva dinheiro. Na verdade, eu não rezo literalmente. Apenas torço, especialmente na Mega da Virada.

Porém, até hoje não deu certo. Nunca ganhei mais nada na vida, nem mesmo nas tão faladas cidades grandes e cheias de oportunidades.

Talvez seja uma boa hora para procurar aquela bíblia...

Animais

Capivara, maritacas, galinhas, onças, arara e outros animaizinhos tão queridos representam a fauna brasileira. A minha maior história com um bicho brasileiro, entretanto, é com o popular vira-lata caramelo.

Ouso dizer que esses cachorros estão presentes em TODAS as cidades brasileiras, mas no interior eles têm muito mais liberdade e intimidade com a população. Até de forma exagerada…

Certa vez, quando moleque, estava em um pequeno município mineiro com pouco mais de 25 mil habitantes. Fui visitar parentes da minha mãe.

Como toda criança apaixonada por futebol, eu sempre estava com uma bola no pé. Nessa viagem, mais especificamente, levei uma pelota rubro-negra que era uma das minhas favoritas.

Cidades do interior são ótimas para praticarmos o bom e velho futebol de rua, pois os carros são como as lanchas poucos e as crianças são muitas.

Rapidamente me inseri em uma das pelejas infantis daquela cidade pouco conhecida por mim. Inclusive ofereci minha bola para ser a protagonista do espetáculo (por isso devem ter deixado eu jogar).

O jogo estava emocionante e bagunçado, como deve ser. Porém, acabou ficando trágico.

Em um determinado momento, um vira-lata caramelo invadiu o "gramado" e saiu correndo com a bola. Com um focinho extremamente ligeiro e com ótimo controle de bola, o cão era imparável.

Corremos atrás dele por alguns minutos até que ele marcou o gol. O problema é que o gol de Caramelo era um bueiro.

Sim, eu perdi minha bola rubro-negra para um vira-lata acima do peso.

Chorei por algumas horas por culpa da bola vermelha e preta e desde então aprendi: quando o assunto é futebol, preciso temer mais a cor caramelo do que as cores de meus rivais.

Plantas

Eu nasci em uma cidade do interior relativamente grande, com mais de 500 mil pessoas. Todavia, o local sempre teve muitas árvores e flores belíssimas.

Nunca liguei muito pra isso. Até o dia do meu primeiro beijo…

Eu tinha acabado de sair da aula de violão com minha colega Carla. Eu tinha uma quedinha (ou uma cachoeira inteira) por ela, mas era tímido demais para tomar alguma atitude.

Por sorte, ela tomou.

Passamos por uma das árvores mais bonitas do bairro e ela parou para observar as flores que estavam brotando. Parei junto. Observei junto. Em silêncio.

De repente, ela me cutucou no ombro.

Quando virei, ela me deu um beijo.

Fiquei em choque. E feliz.

Sem graça, ela deu uma risadinha e falou: até amanhã.

E depois saiu correndo com o violão nas costas.

Depois disso nos beijamos algumas outras vezes, até que ela foi embora para a cidade grande alguns meses depois (filha de bancário brasileiro sofre com isso).

Por muito tempo passei por aquela árvore e lembrei dela.

Até ela ser cortada e também me deixar.

Por sorte, a lembrança é eterna.

Bendita seja aquela bela árvore.

Comidas Típicas

Essa história é curta, mas gostaria que fosse ainda menor, pois me envergonho dela.

Minha primeira experiência como morador de uma cidade grande, com mais de 5 milhões de pessoas, começou mal.

Eu me mudei para trabalhar, mas meu sotaque mineiro era impossível de mudar.

Por conta dele, ouvi deboches, imitações e brincadeiras desagradáveis.

Para piorar, eu ainda tinha o hábito de sempre chegar para o expediente comendo um pão de queijo (se é que posso chamar aquilo de pão de queijo), e isso já gerava uma série de piadinhas óbvias e desnecessárias envolvendo a comida típica mais famosa de meu querido estado.

Mas se um dia é da caça, o outro é do caçador...

Poucos meses depois, um estagiário gaúcho entrou para a firma e todos começaram a debochar do novato. Eu garanto que nunca zombei do sotaque do garoto. Porém, ele sempre chegava no trabalho tomando um chimarrão. E isso gerava uma série de piadinhas óbvias e desnecessárias envolvendo a comida típica mais famosa do Rio Grande do Sul. Inclusive por parte deste que vos escreve.

Não me orgulho do que fiz, mas acho que definitivamente eu tinha virado apenas mais um ser da cidade grande com origens no interior. É aquela história do oprimido que vira opressor.

Talvez eu realmente tenha me tornado um deseducado e eterno bicho de cimento.

Mas confesso que tenho vontade de rezar diariamente para que a rotina animal da cidade grande não me transforme em uma planta que sequer servirá de comida para outro bicho.

Talvez esse seja o caminho natural. Infelizmente.

Mas o que é natural?

Talvez seja aquilo que pertence à natureza.

Mas se for, tá tudo bem.

Talvez eu só não diga que o texto "é sobre isso" porque as pessoas da cidade grande conseguiram acabar até com a naturalidade dessa expressão.

Mas será que está tudo bem mesmo?

Talvez esteja "tudo bem" só no jeito brasileiro de ser brasileiro, independentemente da cidade e do momento de vida.


A estampa Terra Brasilis está presente na Chico Rei em forma de camisa, saia, short e calça.


Tags

daniel furlan, brasilidade, terra brasilis, chico rei lab, histórias


Escrito por

Dani Furlan

Jornalista, escritor e especialista em storytelling apaixonado por filmes e séries. Apesar do nome, ainda não faz parte do Choque de Cultura.