Tinha lareira e chaminé na casa da Joana.
Falando assim pode até parecer que a garotinha era de família abastada. Mas isso não é verdade!
A residência, de fato, era simples. Sabe aquelas casinhas típicas de desenho de criança, pequenas, com montanhas e pôr do sol ao fundo, um cachorro brincando do lado de fora, janelinha no segundo andar, telhado alaranjado e chaminé? Tirando o cachorro, o lar de Joana era exatamente desse jeitinho.
A lareira e a chaminé, incomuns no Brasil por conta do clima e ainda mais raros do lado de fora das guaritas dos condomínios, eram ali mais parte da paisagem do que qualquer outra coisa. Vieram no pacote quando a mãe de Joana alugou a casa, cerca de dois anos atrás.
Mas, uma vez ao ano, na virada do dia 24 para o 25 de dezembro, os dois itens ganhavam uma missão importante: servir como acesso para o Papai Noel deixar os presentes da menina. Do alto nem tão alto de seus seis anos, ela sabia disso. E, por saber, estava preocupadíssima naquele dezembro. Você já vai descobrir por quê.
Jaira
A mãe da garotinha era professora. Nos seis anos de vida da filha, sempre foram só as duas. Em 2020, mais do que nunca.
Com a pandemia do coronavírus, Joana e a mãe estavam trancadas em casa desde o mês de março. O único contato físico que tinham com outras pessoas acontecia na porta de casa para receber as compras - que tomavam um rigoroso banho de álcool ao chegarem.
Por lidar diariamente com crianças e ter criado a filha sozinha, Jaira se acostumou a acumular papéis, responsabilidades e preocupações. Naquele ano esquisito, tudo isso ficou ainda mais acentuado. Ela tomava todos os cuidados recomendados para proteger a casa do vírus e inventava vários outros.
Foi assim que Jaira estragou um de seus principais instrumentos de trabalho, o fone de ouvido que usava para se comunicar com seus alunos nas aulas dadas pelo computador. Em uma distração qualquer, o equipamento acabou caindo no chão. Ela não quis se arriscar a continuar usando sem antes besuntá-lo com uma boa camada de álcool em gel. E aí já viu, né? Sua sorte foi o ano letivo já ter terminado na época do acidente…
Mas desta vez quem estava em risco era outro ser inanimado: a chaminé.
Quem garantiria que receber um estranho em casa àquela altura seria seguro? O martelo estava batido e a fumaça branca estava a caminho: nem o papa pisaria ali. O Noel, coitado, que assim como o líder mundial da Igreja Católica é do grupo de risco, também não escaparia da desconfiança de Jaira. Melhor não dar sorte para o azar. Tempos incomuns exigiam atos incomuns.
Com coragem típica de uma mulher a quem a vida obrigara a se acostumar com a frase “Se der medo, vai com medo mesmo”, Jaira havia vencido seu pavor por altura. Subiu no telhado e parafusou uma placa de ferro na chaminé por onde o Bom Velhinho costumava entrar.
Para o desespero de Joana.
Joana
Ela se sentia muito sozinha. A mãe, mesmo sendo sua pessoa favorita no mundo, era a única companhia que tinha por meses.
Os coleguinhas de escola só eram vistos pelas telas.
Jô esperou o Natal muito empolgada para brincar com os primos e abraçar tios e vovó. Mas se desapontou quando os adultos da família decidiram que não haveria encontro naquele ano, para evitar riscos para todos.
O simpático senhor de vermelho era sua única esperança de ter um alento, de ver alguém diferente, nem que fosse por alguns minutinhos apenas. E ela precisava muito receber o presente que pedira na cartinha enviada no início do mês.
Mas não adiantava implorar: Jaira era irredutível ao enxergar a chegada do Noel como uma ameaça à saúde das duas.
Mesmo que ele tirasse os sapatos e os deixasse no telhado antes de descer pela chaminé e adentrar a casa; mesmo se elas deixassem máscara e álcool em gel para ele…
Joana, então, precisava de um plano.
Consciente de seu tamanho, sabia que subir no telhado para desparafusar a placa seria missão impossível. Também não tinha a opção de ligar para alguém e pedir ajuda, afinal, como a pessoa chegaria e entraria em ação sem que a mãe visse?
Após muito matutar, Joana finalmente tinha uma ideia. O Papai Noel deveria entrar por outro lugar.
Jacaré
Lembra da janelinha do andar de cima da casa? Ela era do “quarto da bagunça”, um lugar usado para guardar qualquer tipo de coisa, desde caixas de papelão cheias de documentos e fotos antigas a brinquedos quebrados, presentes nunca usados e uma televisão de tubo recém-aposentada.
Pela pouca utilização do cômodo e pela proximidade à chaminé, aquela janela seria a aposta de Joana.
Naquela noite de Natal, a menina aproveitou a ida da mãe ao banho e correu para abri-la. Para chamar a atenção do Bom Velhinho, ela contava com a ajuda de seu amigo Yaca, um simpático jacaré de pelúcia, maior do que ela. Yaca fora acomodado sentado na janela, segurando um desenho do aguardado visitante, com uma setinha indicando que a entrada naquele ano seria por ali.
Às nove horas, uma esperançosa Joana fechou a porta do quarto da bagunça e desceu para celebrar o Natal com a mãe. O plano era infalível.
Ho-ho-ho!
Teve arroz com passas. Teve doce. Teve presente dado pela mãe (“para variar, roupa”, pensou Joana - mas bem que ela gostou das novas camisetas que ganhou). Teve TV ligada no especial de Natal. Teve Simone cantando, obviamente. Teve conferência em vídeo com o resto da família, com direito à piadinha do pavê, feita pelo tio Juca...
Mas teve, principalmente, um pequeno coração quase explodindo de tanta expectativa pelo sucesso de seu plano e a chegada do Noel.
Minutos depois da meia-noite, enquanto Jaira começava a arrumar as coisas e guardar as sobras, Joana conseguiu se esquivar para o andar de cima.
Ao abrir novamente a porta do quarto da bagunça, Jô viu muita coisa: uma TV de tubo antiga, caixas com papéis, presentes nunca usados, brinquedos quebrados…
Mas nada do que queria ver.
Teve uma grande decepção. Tudo estava como ela havia deixado. Sem Noel. Sem presente. E com o coitado do Yaca na mesmíssima posição. Aquilo não podia ser possível.
Desolada, a menina desceu as escadas e correu chorando para abraçar a mãe, que perguntou a Jojô o que havia acontecido. A menina contou tudo. E antes que a mãe pudesse falar qualquer coisa, as duas ouviram um sininho.
Au-au-au!
Joana não pensou duas vezes: escapou dos braços da mãe, partiu em disparada, abriu a porta e saiu. A Jaira, desesperada com o fato de a filha ter pisado fora de casa sem máscara, só restou a opção de segui-la.
A cena que viram do lado de fora foi inusitada: na calçada, um cachorro, o típico vira-lata caramelo brasileiro, latia olhando diretamente para elas, agitadíssimo. Ao seu lado, no chão, uma caixa de presente.
Foi quando a garotinha se aproximou do cachorro, pegou a caixa e entregou à mãe.
- Pra você, mamãe!
Sem entender, Jaira tirou cuidadosamente a fita e abriu o papel vermelho.
Um fone de ouvido.
Aquele era o único presente que Joana havia pedido ao Papai Noel naquele 2020. Se preocupava demais com a mãe e com seu trabalho. E agora o fone novinho estava ali, nas mãos de Jaira.
Lá do alto, Yaca observava. E, se não fosse de pelúcia, o jacaré poderia jurar que também tinha visto um trenó.
O cachorro parou de latir.
Emocionada, a mãe começou a chorar e abraçou a filha, sem acreditar naquilo.
Elas tinham semelhanças que iam muito além do J, dos olhos castanhos e do sorriso capaz de manter qualquer vírus longe.
O cachorro se aproximou e começou a lamber as duas, que se olharam e concordaram sem precisar dizer nada. As duas entenderam que tempos incomuns exigiam atos incomuns, como passar o Natal longe das pessoas amadas, subir no telhado para trancar uma chaminé, pedir ao Papai Noel um presente para outra pessoa... Ou como adotar um novo amigo.
Rodolfo, batizado em homenagem à rena mais famosa do mundo, latiu e entrou correndo para casa, junto com elas.
E logo voltou a latir, desta vez olhando para a mesa.
Agora parte da família, ele entendera que tempos incomuns também deixavam brecha para atos tão comuns como implorar por uma boquinha. E aquele arroz com passas cheirava muito bem…
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Para quem teve um Natal incomum em 2020.
Ilustrações: @pedrocos.design