Diário de Uma Crônica Só

Já zerei a Netflix e a Amazon. Maratonei tanta coisa que cheguei a uma conclusão: o Thanos não aguentaria cinco minutos de porrada com o Ian McKellen. O cara é ao mesmo tempo o Magneto, o Gandalf e teria envergadura moral pra ser o Dumbledore. E também me acocorei no cantinho do apartamento, nos vértices da loucura, derramando lágrimas por não poder sair de casa. Tá funcionando, sabia? Mas é porque me permito pirar às vezes, ao mesmo tempo em que decifro os gatilhos que tiram o foco do confinamento. Haaá mano, deixa eu mastigar esse clichêzinho: também quero fazer meu diário da quarentena.

Fiquem tranquilos, é o diário de uma crônica só. Mas vai ter sim um bocado de analogias aos maratonáveis do streaming. Teve aquela vez que saí do corpo. Tipo o Doutor Estranho, quando leva uma porrada na boca do estômago da Mestra Anciã. Esse dia foi loko! Feito câmera alocada no teto, conseguia me ver esbravejando no chão. Vociferava e agitava os braços. Foi quando o eu de cima, e o eu de baixo... Fizemos contato visual com uma tesoura. Enquanto tomava o instrumento, tratei de voltar pra dentro do meu corpo. Aí fiz a Nazaré: com a tesourinha de pelos do nariz em riste, parti pra cima! Calma, calma, fui pra cima dos fios da TV, cortando-os sem dó.

As crises política, financeira e sanitária simultaneamente televisionadas. Num sou Aquaman né, pra levantar sozinho esse pesado tridente. Porém, mais confuso que a última temporada de DARK, o seriado “Brasil 2020” me forçou a gambiarras. Mal cortei os fios da TV e juntava-os com fita isolante. Aquele plot twist do último episódio foi sensacional: Sr. Laranja habitando secretamente a casa do advogado d'Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. É uma reviravolta breakingbadiana! E desculpaí pela piada, Voldemort. Acredite: nem tu merece ter seu maldito nome tomado em vão, tamanha pornochanchada desgovernamental que chafurdamos.

E teve aquele outro dia, em que me oficializei como o Tio das Plantas. Agora passo os fins de tarde cuidando/conversando com minhas filhas: uma roseira e uma suculenta, batizadas com nomes tão fofos que tenho até vergonha de escrevê-los aqui. Haaá... E tem o bastardinho, né. Deixaram-no na porta de casa, numa cestinha com um bilhete, dizendo que era meu. Um lindo baby-pé-de-boldo, de um palmo. Já tinha até escolhido um nome fofo pra ele também. Só que agora tá com uns três metros; é tão indisciplinado quanto o seu tamanho. E toda vez que o chamo pela alcunha fofa, ele responde puto: “I am Boldo, I am Boldo!”. Virou o GROOT essa porra!

Fica mais puto ainda quando arranco suas folhas pra fazer chá. Nada alucinógeno, converso com as plantas sim, e daí? Meu pé é de boldo mesmo - chazinho digestivo, pra curar a ressaca. Porque teve aquele outro dia... Em que me auto-credenciei barman. Profanei minha adega, criando dois novos drinks: Heresia e Sacrilégio. Levam maracujá e gelo, maculando especialíssima cachaça e whisky. Ambas bebidas com mais tempo de barril do que eu na Terra. Já me ameaçaram de excomunhão por isso.

Bebo em casa... E quem sabe um dia, numa galáxia muito distante, volte a beber no bar. Tenho a guarda compartilhada de uma Cocker Spaniel, que me leva pra passear às vezes. Tá bem idosa, porém com o faro perfeito, captando as emissões hormonais de quando explodem meus gatilhos. “Tá na hora de levar esse louco pra passear!”. É o que passa pela cabecinha dela, ao flagrar-me agachado pelos cantos. Ficam aqui registradas minhas desculpas, sendo esse o único momento em que furo a quarentena: quando o cachorro me leva pra dar uma voltinha.

Ela escolhe o caminho, passando sempre pelo cemitério boêmio próximo de casa. Bares encerrados! Dos meus olhos saem raio laser, feito Estrela da Morte - fulminando a placa de aluga-se onde jazia meu boteco favorito. Perdemos muita coisa nessa pandemia, inclusive a sanidade. Minha máscara é estilizada, simulando o capacete do Darth Vader. Antes que eu reaja com A Força, apontando os dedos contra outros donos encoleirados a passear... A dog percebe que precisa me levar pra casa.

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Sobre o autor: nascido na mitológica Caratinga (MG), Tiago Santos-Vieira fez voto de pobreza ao optar pelo Jornalismo (UFJF). Da miséria, passou à escravidão voluntária, trabalhando com periódicos em São Paulo (chegando a morar em um MOTEL). Foi um lapso temporal produtivo, com publicações nas revistas Rolling Stone, Trip/TPM, Riders e no Diário de Guarulhos. Fechado esse ciclo, voltou à Terra do Nunca, vulgo Caratinga, passando uma temporada trancafiado num quarto escuro. Quando viu a luz, fora aprovado em um concurso público e estava grávido de um livro. Foi então morar em Brasília, onde, após sanguinolenta gestação, pariu o suspense Elos do Mau Agouro. Torna agora a Minas, publicando o infantil As Aventuras do Super Careca e o suspense Dança das Bestas. Siga o Autor: @santosvieiratiago