Infeliz Ano Velho

Essa é uma carta aberta ao ex-amigo. Mais pra Maquiavel do que pra Saint-Exupéry, prefira cortar a cabeça do príncipe, em vez de ser eternamente responsável por aquilo que cativas. De tóxico, já basta a cloroquina. Não és obrigado, por dívidas afetivas, ao martírio da amizade que tirou a carapuça só em 2020. Então não deixe esse contrato sentimental, lavrado às vezes na inocência da infância, tirar a sua paz. Troque os barracos virtuais pela expansão do conceito de afastamento social: coloque esse “amigo” e suas opiniões numa distância bem segura.

De jeito nenhum botemos a “Lei de Milton” em cheque. Suspendamos sua exigibilidade temporariamente. Em nome da sanidade, deixemos o ex-amigo nas profundezas de seus posicionamentos de gosto duvidoso. Quem sabe um dia, num novo normal não tão distante, o realoquemos no lado esquerdo do peito. Mas vai ser um trabalho nojento de reconquista, viu?! Beirando a coprofagia: engolir cada merda defecada pela boca, naqueles tempos difíceis onde o mais astuto seria emudecer-se.

Haja álcool pra isso! Não gel 70 por cento, para higiene de quem andou comendo cocô. E sim líquido lupulado, ingerido sentado, na mesa de um bar lotado - com geral cantando uma variante do melô do Chico Cesar: “Eu já tomei vacina; Tô nem aí se tu tomou cloroquina!”. É esse o futuro oferecido ao ex-amigo. Todavia, voltando ao mundo real, registremos mais limites ao perdão. Sabe-se que antes de 2020, houve um 2018, onde se abriu gamas de opções no espectro político. Entre “a culpa é do PT” e o “moribundo PSDB”, tínhamos um leque de cores para escolher. E quem foi que tu elegeu, hein, hein?

Aí chegamos na parte da crônica onde, numa tocante tilelê, aprofunda-se no processo de elevação espiritual - considerando clemência ao ex-amigo que cravou o sétimo número primo nas urnas. Para tal, a cláusula pétrea é: apresentar certidão de extrema incapacidade, rubricada com as mais sinceras tintas de arrependimento. A indulgência tem revogação instantânea no caso de reincidência em 2022. Porque se isso acontecer de novo, caro ex-amigo: que beba naquele monossílabo tônico não acentuado terminado em u.

Se bem que cada um faz o que bem entender com seu monossílabo, né!? Ninguém tem nada a ver com isso. Mas que em português chulo, o monossílabo terminado em u rima com aquela franquia francesa de supermercados, onde ocorrera a maior barbárie de 2020... Isso sim, rima! Selvageria essa acompanhada no pódio pelas pedaladas abusivas de um certo boleiro decadente; e pelas abóboras vomitadas pelo nosso mandatário em suas lives. O infeliz fez piada com um patrimônio imaterial maranhense: a cor rosa do guaraná Jesus. Só mesmo o filho de Deus nessa causa!

Então ex-amigo, se nessas ilustrações da maldita trindade do preconceito, você relativizou em vez de se colocar contra... É bem provável que além de racista, misógino e homofóbico, sejas também negacionista. Nesse caso, tomara que te apliquem a dose 001 da vacina. E que num delírio presidencial-kafkaniano, tu acordes virado em cinto, bolsa e sapatos de jacaré, exportados pra bem longe daqui.

Ainda sobre o pódio da barbárie, é preciso também medalhar o ex-amigo que relativizou o caso Mari Ferrer - para o qual os holofotes infelizmente já se apagaram. É aquela amizade, saca? Que a plenos pulmões virtuais postava: “Não existe estupro culposo!”. OK, não existe mesmo essa tipificação jurídica. Contudo, por mais que houvesse brechas legais respaldando a absolvição do abusador, o tratamento recebido pela jovem no julgamento foi um verdadeiro show de horrores.

Em uma situação onde deveria imperar o acolhimento, revelou-se o quão misógino é o Judiciário. Se ao assistir os vídeos do julgamento, sob as lágrimas de Mari, a agressividade do advogado e a apatia do juiz ao permitir o ataque... O ex-amigo insistiu nas teses processuais, em vez de se sensibilizar de alguma forma... É claro que as cláusulas de perdão já foram revogadas, impetrando-se automaticamente uma medida protetiva contra essa amizade. Ao ex-amigo deseja-se um infeliz 2020; é naquele ano que deverás ficar.

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Sobre o autor: nascido na mitológica Caratinga (MG), Tiago Santos-Vieira fez voto de pobreza ao optar pelo Jornalismo (UFJF). Da miséria, passou à escravidão voluntária, trabalhando com periódicos em São Paulo (chegando a morar em um MOTEL). Foi um rasgo temporal produtivo, com publicações nas revistas Rolling Stone, Trip/TPM, Riders e no Diário de Guarulhos. Fechado esse ciclo, voltou à Terra do Nunca, vulgo Caratinga, passando uma temporada trancafiado num quarto escuro. Quando viu a luz, fora aprovado em um concurso público e estava grávido de um livro. Foi então morar em Brasília, onde, após sanguinolenta gestação, pariu o suspense Elos do Mau Agouro. Torna agora a Minas, publicando o infantil As Aventuras do Super Careca e o suspense Dança das Bestas. Siga o Autor: @santosvieiratiago