Com tijolos feitos de açaí, Francielly Barbosa inventa uma nova história no interior do Pará
Aproximadamente 90% de todo o açaí consumido no mundo é produzido no Pará, mas só 4% do fruto é aproveitado, provocando uma contaminação do meio ambiente regional. Hoje vamos contar a história da jovem cientista Francielly Barbosa, que é da cidade de Moju, no Pará. Fran criou um tijolo de caroço de açaí aos 18 anos e coleciona mais de 20 prêmios em eventos nacionais e internacionais pela invenção. A criação ameniza o problema ambiental e contribui para que os moradores da cidade onde vive tenham condições mais bacanas de moradia. Embarque com a gente nessa entrevista que envolve açaí, uma aranha e uma menina criada pela mãe e avó que teve a chance de reescrever a própria história a partir da Ciência.
Fran, como você percebeu a oportunidade de utilizar o caroço do açaí para fabricação de tijolos?
Foi o primeiro teste que fiz. Eu tinha pesquisado vários materiais que estavam sendo desperdiçados e usados de maneira indevida, entre eles o caroço de açaí. Quando fiz a primeira mistura, carbonizei o caroço do açaí, triturei, misturei com argila, ficou resistente, mas eu não sabia qual era o potencial desse material realmente. Mas só acendeu a luzinha de que realmente era possível quando participei da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia, a Febrace. Um dos avaliadores, que era Engenheiro Civil, começou a falar de atividade pozolânica, que era a mistura da argila com o carvão, e falou que aquilo era possível, então eu entendi que realmente poderia utilizar o caroço do açaí para a fabricação de tijolos. O projeto ficou conhecido como tijolo de açaí, mas na realidade esse é o material construtivo. É como se fosse uma argila modificada que você molda e usa da forma como precisar. Pode usar como tijolo, telha, concreto ou argamassa dependendo das porcentagens de cada elemento e da agregação de outros.
O problema do caroço do açaí é muito grande porque 90% do açaí produzido e consumido no mundo todo é produzido no Pará. E nenhum grão vai para fora, fica tudo aqui. Só na minha cidade são cerca de 16 toneladas descartadas diariamente. Anualmente são mais de mil toneladas de caroços que não recebem direcionamento adequado porque a prefeitura recolhe e joga em lixões ou terrenos baldios. O caroço do açaí possui também lignina, uma substância que impede que os fungos ataquem, protegendo esse material. O caroço não é de fácil decomposição e por conta do alto volume de descarte e por ele se decompor de uma maneira muito vagarosa, os montes são enormes. Poder contribuir com a melhoria da vida das pessoas, para mim, dá um sentimento de satisfação inexplicável. Eu cresci na periferia, cresci pobre e sabendo que eu não teria as mesmas oportunidades das pessoas que têm dinheiro, que podem ter uma boa educação e tudo mais. Mesmo assim, me empenhei no projeto, na pesquisa e em cada coisa que eu fiz na minha vida. E poder ver algo que eu criei dando frutos e mudando a vida das pessoas é muito gratificante.
Você é de Moju, uma cidade do interior do Pará. Como a Ciência tem sido importante para abrir portas, permitir que você conheça novos lugares e ampliar perspectivas?
A Ciência mudou minha vida. Na verdade, a Ciência muda o mundo. Se hoje a gente tem celular para se comunicar é porque a Ciência existiu. Estando no interior do interior, trabalhando aqui, morando aqui sempre, não tinha muita expectativa pra mim. Porque pobre, do interior do Pará, criada pela mãe e pela avó, só estudei em escolas públicas em que muitas vezes faltavam professores, vivendo numa casa de madeira na periferia com mais de dez pessoas morando juntas. Mas eu vi algo que me apaixonou muito que foi a Ciência. Então ela mudou completamente minha vida. Eu já tinha sonhos bem grandes desde pequena. Eu já falava: ah, eu quero visitar a cidade tal, eu olhava nos livros, na época eu não acessava a internet, eu olhava nos livros que minha avó comprava pra mim e falava: olha essa cidade é muita bonita, eu quero visitar… Olha, essa Feira de Ciências é muito legal, um dia eu quero participar. Eu tenho oito tios, eles ficavam rindo de mim, dizendo que era doidice minha, que não era possível, que eu tinha que me contentar. Eu não desistia, sempre coloquei que eu queria aquilo. Quando eu comecei a ser reconhecida pelo meu trabalho, minha mente abriu mais, eu pude sonhar. O mundo começou a ficar menor para mim por conta da Ciência.
Como foi seu percurso na Ciência? Agora que você terminou o Ensino Médio, quais são seus planos?
Meu projeto iniciou no primeiro ano do Ensino Médio, eu estudava na Escola Estadual Professora Ernestina Pereira Maia e tive apoio do Clube de Ciência de Moju. É um projeto do município, idealizado e construído pela professora Raquel Siqueira que é mãe da minha orientadora, a professora Daniele Siqueira. O Campo de Ciência atende 200 escolas dentro do município de Moju e ele funciona na minha antiga escola. Eu já fazia projeto científico desde os oito anos de idade graças ao Clube de Ciências dando abertura para crianças fazerem desde pequenas a iniciação científica. Então comecei a me apaixonar desde cedo. Eu via mulheres ali trabalhando, coordenando, elas é que mandavam na Feira de Ciências, elas é que faziam com que aquela feira acontecesse. E faziam com amor, de uma forma muito apaixonante. E o amor delas pela Ciência acabou virando também o meu amor. Hoje eu trabalho de maneira voluntária no Clube de Ciências Moju junto com a professora Daniele.
Ganhei uma bolsa para estudar inglês por três meses na Irlanda. Estou indo dia 15 de abril fazer esse intercâmbio. Quero estudar Engenharia. Meu grande sonho é estudar no MIT, que é a maior escola de Engenharia do mundo. Na primeira vez que participei da Febrace, ganhei uma premiação que me levou a conhecer Harvard, Olin College e MIT. E eu fiquei completamente apaixonada pela estrutura, grade e oportunidades do MIT e por tudo aquilo que poderia sonhar pra minha vida.
Você envolveu outros jovens de Moju na criação dos tijolos. Como foi esse processo e qual é a importância de ter sua comunidade colocando a mão na massa? Muitas residências de Moju foram construídas em terrenos frequentemente usados como local de descarte de lixo, como o tijolo de açaí minimiza esse problema?
Foi muito legal envolver as pessoas daqui na construção desse material colocando a mão na massa. Tudo começou a partir do momento em que eu precisava fazer alguns testes com os tijolos. Precisava enviar 20 tijolos para a USP pra serem testados. Sozinha, eu não ia conseguir. Então eu fui chamando meus amigos, as pessoas que eu conhecia para me ajudarem na fabricação, mas em cima da hora todo mundo começou a desistir. Eu e a Bia Cintra, que é gestora dos projetos em São Paulo, estávamos desesperadas pra fazer os testes porque só nós duas não iríamos dar conta de fazer os tijolos todos. Então apareceu uma aranha na casa em que estávamos e a Bia colocou a aranha no pote para soltar na praça. Alguns meninos viram a cena, vieram conversar, eu contei do desafio dos 20 tijolos e eles toparam nos ajudar, apareceram lá em casa e essa se tornou a melhor equipe com quem trabalhei. Ver todo mundo ali como um só, vendo que a Ciência também é brincadeira foi a maior das premiações que eu já recebi. Existem muitas construções irregulares na cidade de Moju. Segundo minhas pesquisas, mais de 60% da população acaba morando em áreas de risco. Infelizmente, essas pessoas que já estão morando em áreas de risco não vai ter jeito da gente tirar da casa, mas meu projeto evita que outras pessoas comecem a fazer essas construções e também dá outra opção para as pessoas que estão iniciando, para que possam fazer as construções de uma maneira diferente, organizada, segura e acessível.
O pedido de patente já foi feito? Como o projeto pode alcançar uma escala maior de produção?
O pedido de patente já foi feito, fizemos todos os trâmites do Instituto Nacional da Propriedade Industrial e a gente não pretende alcançar uma grande escala de produção porque o impacto que nós queremos causar é para as pessoas que realmente precisam. Se por acaso vendêssemos a ideia para uma grande empresa, ela fabricaria esse material e venderia para as pessoas num valor alto. As pessoas constroem as casas de maneira irregular porque não têm dinheiro para comprar o material correto. Logo, o meu material vai se tornar uma escapatória. A gente já finalizou o processo de patente e agora vamos escrever livros, cartilha sobre o material, sobre como construir casas. Vai ter um protótipo de casa, barato e seguro. A gente fez uma imersão agora em janeiro contando com os alunos da USP, os alunos da Uepa, os alunos do ensino médio que fazem parte do núcleo de Ciências de Moju e também alguns alunos do ensino fundamental. Saímos visitando casas, buscando entender como as construções são feitas, com quais materiais... Com base nessas informações, com a ajuda de engenheiros e arquitetos a gente vai fazer um plano de construção de uma casa barata gastando o mínimo e dando o máximo de conforto a essas pessoas e distribuir essas cartilhas para as comunidades.