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Um viva à Ciência e aos profissionais que atuam no combate à Covid-19! Confira o relato de um médico de família e comunidade do SUS


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Um viva à Ciência e aos profissionais que atuam no combate à Covid-19! 
Confira o relato de um médico de família e comunidade do SUS

Em parceria com o Meninas e Mulheres na Ciência, buscamos profissionais que estão na linha de frente do combate ao Covid-19 para enlarguecer horizontes. O médico de família e comunidade Guilherme Antoniacomi Pereira, que atua na periferia de São Bernardo do Campo, relatou um pouco de sua vivência no Sistema Único de Saúde e destacou  a importância da defesa do SUS. Confira abaixo!

Meu nome é Guilherme, tenho 26 anos, sou de Curitiba, graduado em Medicina, pela Faculdade Evangélica do Paraná em 2018, e, hoje, cursando a residência médica em Medicina de Família e Comunidade em São Bernardo do Campo/SP. Atuo num bairro periférico da cidade, na Unidade Básica de Saúde Jardim das Orquídeas, onde desenvolvo o duplo trabalho de me formar como médico especialista e atender a uma população específica. Além disso, faço parte do Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, produzindo conteúdo e pesquisas principalmente sobre a saúde LGBTI+.

O Médico de Família e Comunidade no Brasil equivale ao General Practitioner (GP) ao redor do mundo, mais evidente em países que possuem a Atenção Primária à Saúde (APS) como base de seu sistema de saúde, como Inglaterra, Canadá, França, Itália, entre outros. Nós temos uma atuação diferenciada do famoso “clínico geral”, pois somos especialistas no cuidado centrado na pessoa, ao longo de toda a sua vida, desde o pré-natal até a velhice, passando pela saúde da criança, saúde mental,  saúde da mulher, e por aí vai. Temos como foco principal, mas não exclusivo, a prevenção e promoção de saúde. Praticamos a medicina baseada em evidências científicas atualizadas, obedecendo critérios para o encaminhamento à atenção especializada, secundária ou terciária, sem perder a responsabilidade de coordenação do cuidado da pessoa.

Trabalhando no SUS, fazemos parte das equipes da Estratégia Saúde da Família, compostas por medicina, enfermagem, odontologia, agentes comunitários de saúde (ACSs), além de membros do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que variam entre psicologia, nutrição, fisioterapia, serviço social, entre outros saberes. Idealmente, segundo o próprio site do Ministério da Saúde, teríamos um território adscrito composto por, no máximo 4.000 pessoas sob nosso cuidado, o que na prática varia muito, principalmente em territórios dinâmicos, sujeitos a ocupações, supercrescimento da população e dificuldade das gestões municipais de regularizar o cadastramento de seus usuários. Na nossa jornada semanal, temos consultas individuais, procedimentos cirúrgicos ambulatoriais, atividades de planejamento sexual e reprodutivo, atividades coletivas, reuniões da equipe multiprofissional, variando de equipe para equipe, já que nossa atuação é influenciada pela comunidade.

Com a pandemia da COVID-19, ficou ainda mais clara a importância do nosso trabalho. Os médicos de família e comunidade são "os primeiros a entrar e os últimos a sair”. Como fazemos um trabalho de vigilância de uma população específica, somos os primeiros a atentar para alguma doença nova que possa estar circulando dentro do nosso território. Somos nós que, quando trabalhamos em uma rede de saúde organizada, encaminhamos os casos moderados ou graves para o serviço de urgência/emergência ou hospitalar. E também somos nós que cuidamos e cuidaremos de todos os problemas de saúde negligenciados durante este período, como as doenças cardiovasculares, os novos diagnósticos de câncer, as consequências respiratórias do próprio Sars-Cov-2, sem falar das questões psicossociais, o aumento da violência às populações marginalizadas, aos transtornos mentais, e todo o resto.

Na unidade em que trabalho, por ser considerada uma "unidade escola” pela presença do Programa de Residência Médica e Multiprofissional, rapidamente formamos um comitê local de combate à COVID-19. Criamos um fluxo interno de isolamento dos pacientes, escala dos profissionais, cobramos da gestão municipal os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), elaboramos um esquema de monitoramento e vigilância dos casos notificados antes mesmo de isso se tornar um protocolo do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal. Além disso, tomamos a ousada decisão de não fechar o acesso aos atendimentos, algo que aconteceu em muitas unidades de saúde pelo Brasil. Estabelecendo diversas medidas de isolamento e proteção, mantivemos o acompanhamento da saúde de nossa população adscrita, inclusive as atividades de planejamento sexual e reprodutivo, além de priorizar o atendimento e vigilância a casos de violência doméstica. Sem dúvidas, tudo isso fez com que a nossa rotina ficasse muito mais pesada desde o início da pandemia. O número de atendimentos variou muito ao longo das semanas, entre esvaziamento e superlotação das agendas e que, agora, com três meses de pandemia, a tendência do trabalho é só aumentar progressivamente.

O mais difícil pra mim foi lidar com a reconfiguração na rede de suporte neste momento. No trabalho, sinto-me cada vez mais exposto, tanto pelo aumento de casos confirmados quanto pela falta de seguridade, principalmente no momento em que a gestão municipal passou a remanejar trabalhadores para os serviços hospitalares ou de urgência e emergência, ou quando alguns colegas começaram a se afastar por desenvolver sintomas respiratórios. Na vida pessoal, apesar de viver com meu companheiro, fica cada vez mais difícil me manter em isolamento, não poder visitar a família em outra cidade, além de não poder me desconectar da COVID-19, mesmo fora do trabalho. Somos bombardeados de informações, notícias, mensagens de amigos ou familiares, debates, estudos, mesmo no fim de semana, ou à noite, fora do horário de trabalho. Obviamente, tudo isso fica ainda mais difícil quando somos confrontados com discursos negacionistas, como o do presidente e seus adeptos. Ora pela falta de credibilidade dos dados ora pela suposição de que um medicamento - a cloroquina - salvaria a nação, tudo isso faz com que fiquemos desmotivados para seguir no combate à pandemia. Além disso, é justamente no território em que atuo, na periferia, que as contradições do momento atual são mais severas: o sub ou desemprego, a pobreza, a violência etc. O isolamento social, combinado à falta de seguridade, é muito mais difícil - ou impossível - para essas populações.

Estamos vivendo hoje uma prova histórica do que a teoria já definiu como determinação social do processo saúde-doença. O que define saúde, no caso da COVID-19, não é a presença do vírus em si, mas as condições materiais que o indivíduo e a sociedade têm de resposta a ele, incluindo habitação, educação, saneamento, trabalho, e um sistema de saúde potente. O Brasil já vivia antes da pandemia a famosa tripla carga de doenças: crônicas não transmissíveis (hipertensão, diabetes, câncer etc.); externas (acidentes, violência etc.) e infectocontagiosas. O Sistema Único de Saúde (SUS) é, sem dúvidas, o que poderia dar conta dessa tarefa com excelência.

Da sua criação, em 1988, na constituição, o SUS já levava em conta os determinantes sociais e colocava a saúde como direito de todos e dever do Estado. É de dentro dele, com a Estratégia Saúde da Família, que olhamos para o indivíduo de forma sistêmica, e com a atenção especializada, que também ofertamos cuidado sob o paradigma biomédico, através da regulação dos leitos de enfermaria e UTI, da realização de procedimentos de alta complexidade... Acontece que, desde sua criação, o direito à saúde sofreu diversos ataques da política neoliberal, tornando-se cada vez mais mercantilizado. O SUS deixou de ser uma política de Estado, permanente, para se tornar uma política de governo. Passando pelas mãos de políticas ultraliberais e conservadoras, fica à deriva do subfinanciamento e agora, após a Emenda Constitucional 95, “da morte”, do "desfinanciamento”. Assim, em 2020, o SUS perdeu a oportunidade de colocar-se no mundo como o melhor sistema de saúde a combater a pandemia.

Se antes, o SUS fazia parte de um projeto civilizatório de um Brasil pós-ditadura, hoje, ele é peça fundamental na defesa da vida de nossa população. Sem ele, corremos o risco de viver, além de uma crise social e econômica sem precedentes, uma verdadeira barbárie na saúde durante e após a pandemia. Na periferia, já vemos sinais claros deste caos: aumento de violência à população marginalizada (mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTI+, idosos e crianças) e suas consequências; aumento exponencial dos transtornos mentais relacionados a estressores sociais, como desemprego, machismo, racismo, LGBTIfobia, levando desde ansiedade-depressão e dependência química até tentativas e mortes por suicídio;  aumento do número de gestações não planejadas e indesejadas, sem a oferta do direito ao abortamento seguro; aumento das doenças cardiovasculares por falta de alimentação adequada, esporte e lazer; aumento das filas de espera para exames de alta complexidade para o diagnóstico de câncer e outras doenças; diminuição das testagem para doenças infectocontagiosas, como HIV, sífilis, hepatites e tuberculose.

Portanto, gostaria de fazer um apelo a todos os leitores e leitoras para que, mais do que parabenizar e aplaudir os profissionais de saúde, defendam o nosso SUS. Precisamos dar continuidade a este caminho de civilização do Brasil, impedindo qualquer ameaça ao nosso direito à saúde no seu mais profundo entendimento.


Tags

SUS, Medicina de família e comunidade, Luta contra a Covid-19!, Meninas e Mulheres na Ciência


Escrito por

Chico Rei

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