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O Bife

Nada de temperos; apenas pitadas de sal. Nada de manteiga ou azeite; um fio de óleo na frigideira, só para “puxar”, como dita a gastronomia: o “bife de bunda”, por demais adiposo, fritaria na própria gordura.


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O Bife

Mesa posta, taças cheias e utensílios na bancada junto ao fogão. Prato principal: carne, obviamente. Mas o ingrediente não estava na geladeira, nem acondicionado em qualquer outro canto da residência. Vinho, gargalhadas, mais vinho e nossos olhares centram foco um no outro. Os subsequentes segundos de silêncio serviram-lhe de ordem, para que avançasse sobre mim. Estourou os botões da minha camisa, não sem antes arrebentar os seus.

Jogou-me na mesa, sem pesar em estilhaçar os pratos no chão. Era mais forte, travando-me de forma que não irrompesse ao ataque. Leão e antílope sob luzes apagadas: assim não viu meu constrangimento enquanto me lambia do umbigo ao pescoço, alternando mordiscadas nas tatuagens dos mamilos. E ao tentar enfiar a língua na minha boca, afastei seu rosto, dizendo: “agora, quero agora!”. Senha para que a jiboia afrouxasse o abraço no carneiro, levando-me de mãos atadas até a bancada perto do fogão.

Empurrou-me contra a parede; minhas costas suadas grudaram no azulejo frio. Investiu novamente contra minha boca, tentando roubar um beijo. Quando estava perto do êxito, larguei-lhe uma mordida no lábio inferior. Parece ter gostado, abrindo um sorriso enquanto a cascata vermelha minava do beiço. O paladar de seu sangue me instigou: “agora! Eu quero AGORA!”, gritei.

Então ele me virou subitamente, colando meu peito no azulejo. Desceu até os quadris, apalpando minhas nádegas. Depois subiu a mão, estacionando na cintura, onde enfiou os dedos no vão entre cinto e presilhas da calça. Na outra mão havia uma faca, sacada da bancada e colocada naquele vão. Um só golpe e o couro partiu-se em dois. Folgada, a calça veio abaixo sem desabotoar. Cortou também o cós da cueca. Tinha-me nu, como querias e também já estava. Perante minha vulnerabilidade, colocou o instrumento em riste, não pensando duas vezes antes de, para meu deleite, varar-me a bunda.

Varada com uma faca, aquela mesma sacada da bancada. O fino gume correu macio pela nádega esquerda, tirando um profundo e gorduroso bife. No interstício do enlace, enquanto se enchiam as taças de vinho, uma frigideira foi posta na trempe acesa. Findado o corte, com o bife recolhido à taboa, a frigideira incandescente serviu para cauterização. Comigo ainda de costas, foi chapada de uma só vez na bunda, detendo o sangue que minava em bicas. Quase arranquei mais um dedo ao lançar-lhe os dentes, abafando doloridos berros.

Sempre me regozijei com a dor, tendo-a como esporte. Naquela noite o gozo alçou novos patamares, elevados pelo aroma de carne humana frita. Meu algoz foi perfeito no ato, seguindo cegamente os desejos da presa. Mas... Analisando pelo prisma da persuasão, a dita presa angariava status de carrasco, tamanho o seu dom em fazer joguetes com sentimentos alheios.

A queimadura na nádega potencializou meu andar coxo. Sem sapatos ortopédicos então... Caminhei dificultosamente até a mesa de jantar. Doeu muito sentar em cima da ferida cauterizada. Logo bolhas aquosas brotariam na região - infortúnio tomado como fel e virado em doce pra mim. Em momento algum retirei minhas luvas protéticas. Munido delas, segurei firme o cabo dos talheres, socando-os no tampo da mesa, assim como fazem os que esperam banquetes.

Nada de temperos; apenas pitadas de sal. Nada de manteiga ou azeite; um fio de óleo na frigideira, só para “puxar”, como dita a gastronomia: o “bife de bunda”, por demais adiposo, fritaria na própria gordura. Com pouco sal, as papilas desvendariam o real gosto da carne humana. Mas real seria se crua, como eu já havia experimentado e preferia. Não sendo o caso do acompanhante à mesa, virgem em paladares canibais.

O generoso naco de carne encolheu na fritura. A capa de gordura reduziu-se em três quartos. Antes avermelhado, o corte ganhou tom marrom desbotado, estando entre o mal passado e ao ponto. Partido em dois, minavam dos pedaços tímidos filetes de sangue. No prato acompanhavam aspargos, tomates cereja e rúcula. Vinho, vinho e mais vinho... Ingrediente para que o açougueiro tirasse e comece o “filé de bunda”? Ledos e mais ledos enganos! Fez na nádega a incisão, como numa sóbria peça de picanha. À mesa comeu a carne, sem mesmo usar a salada para amenizar o excêntrico paladar. Tudo com olhos vidrados em mim. Os raios invisíveis que lhe saltavam das pupilas decretavam: “faço tudo por você!”.

“Tinha a carne suína em mente, mas depois que experimentei, não sei mais... É para poucos, viu!?! Tem um gosto forte. Algo difícil de definir, porque começa levemente amargo e termina adocicado”. Fiquei intrigado com a definição cuidadosa do sabor que ele fez. Se antes estava incomodado com suas truculentas investidas, lambendo-me e roubando beijos, agora estava admirado com o seu empenho em agradar.

Resolvi então dar-lhe créditos. Sabia do seu interesse em saber como perdi os dedos - e achava respeitoso nunca ter me perguntado, julgando que poderia ofender. Como agora conhecia minha predileção por carne humana, participando do que fiz à própria bunda, é óbvio que conjecturava sobre onde jaziam os dedos: no meu ou em outro estômago.

Sobre o Escriba: disse que O Bife é um conto adaptado de Dança das Bestas, seu próximo livro. Esse mesmo conto foi publicado originalmente na coletânea Hipérboles. Calma, calma que uma hora Dança das Bestas sai!


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tiago santos-vieira, crônica, bife


Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.