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Medo e Delírio no Cerrado

O velho Jornalista só se comunicava com o mundo através de um rádio amador. Fanático por armas, passava os dias em seu rancho, nos confins do Cerrado, atirando em Tamanduás, Guarás e tudo que passasse pela frente.


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Medo e Delírio no Cerrado

O velho Jornalista só se comunicava com o mundo através de um rádio amador. Fanático por armas, passava os dias em seu rancho, nos confins do Cerrado, atirando em Tamanduás, Guarás e tudo que passasse pela frente. Desde 2010 não mais escrevia. Nenhum artigo, matéria... Ou qualquer maledicência a políticos. Nenhuma história estranha sobre tempos estranhos vividos no Distrito Federal. Às vezes, recordando seu passado áureo, esboçava amalucadas crônicas, vitimando antigos inimigos da Câmara e do Senado. Textos descartáveis ladeando a latrina, cumprindo “papel de papel higiênico” - apropriado protesto para com desafetos.

Aquele homem de 60 anos, que no tardar da noite se encontrava totalmente entorpecido, colocou a Cachaça debaixo do braço e dirigiu-se ao porão do rancho. Abriu então um empoeirado baú e começou a revirar suas lembranças. Encontrou uma surrada jaqueta de couro, com um anjo de feições diabólicas estampado nas costas. Vestiu-a! Talvez pela embriaguez ou por começar a sentir os efeitos do Ácido que consumira há pouco... Recebeu de encontro ao rosto uma forte rajada de vento. A sensação era idêntica a que desfrutava quando montava seu cavalo de aço, rasgando os eixos da Capital asa a asa. Colocou mais Ácido sobre a língua. Cambaleante, postou-se à frente do armário onde guardava as armas que colecionava. Hesitou entre uma Doze e um revolver de dois canos e seis tiros. Optou por uma de suas relíquias, presente de um tio-avô das Minas Gerais: a famigerada Winchester 22.

Largou-se em uma encanecida poltrona e se pôs a polir a arma que, apesar de antiga, ainda era certeira. Jogou mais Cachaça garganta abaixo. Municiou a rifle. Pensou na ex-mulher, balbuciando qualquer coisa em tom ébrio. Engatilhou a espingarda feito Faroeste e... Viu algo inusitado descortinar-se na penumbra: Juscelino Kubitschek, com aspecto cadavérico e faixa oficial no peito, vinha em sua direção. O Presidente estava de mãos atadas e segredos ao ouvido, com alguém fantasiado de porco de pelúcia rosa. O lapso lisérgico o fez viajar pelos canos da própria Winchester - acompanhando o trajeto do tilintar da espoleta à nova decoração da parede: miolos e pólvora. Um Carcará no telhado voou com o estouro, pousando nas anti-arestas do Congresso, para uma madrugada mal dormida.

Sobre o Escriba: agora tá assim, super fofo no trato político. Hunter Thompson cambalhoteia no túmulo.  


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conto, tiago santos-vieira


Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.