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Serotonina

Quando adentra ao apartamento 508, sua alcunha é Spike, não mais respondendo pelo que firmou o batismo. Todos na Sociedade das Correntes têm codinomes e, junto com os sapatos amontoados no hall, deixam suas rotineiras vidas. A entrada do apartamento é um portal.


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Serotonina

Paramos o carro em um rotativo, a uns setenta números do nosso destino. O envelhecido edifício impressionava pelos traços arquitetônicos. Quando adentra ao apartamento 508, sua alcunha é Spike, não mais respondendo pelo que firmou o batismo. Todos na Sociedade das Correntes têm codinomes e, junto com os sapatos amontoados no hall, deixam suas rotineiras vidas. A entrada do apartamento é um portal, que teletransporta os membros do “clube” para outro plano, onde nada mais importa.

Sem danos estruturais, as paredes foram demolidas. Instalaram divisórias apenas no banheiro. O imóvel, com correntes dependuradas no teto, transformou-se quase que numa morada de um cômodo só. Somando Spike e eu, contabilizavam 17 pessoas no recinto. Dark Clown, espécie de líder da Sociedade, percebeu meu esbugalhar de olhos e veio interrogar: “qual o porquê desse espanto? [risos]”. Após quebrar o gelo e colocar meus olhos nas órbitas, Clown continuou: “então é você o Jornalista? Peço apenas que resguarde nossos verdadeiros nomes. Muitos estão aqui no anonimato. Por favor, sem fotos! Faça ilustrações ou algo do tipo... No mais, escreva o que quiser”.

O educado Clown fez questão de mostrar a parafernália no canto do salão, para higienizar o material utilizado na Suspensão. Em recipientes plásticos, banhados numa solução antisséptica, estavam ganchos de aço cirúrgico. As peças seriam posteriormente alocadas em autoclaves sob altíssimas temperaturas. O líder informou ainda que participaríamos de um momento muito especial. A iniciação de um membro.

Uma bela Ruiva, aparentando 20 anos, sai do banheiro vestindo um robe. Recebe abraços de todos os presentes [meus inclusive]. Livra-se da vestimenta. Um biquíni lhe cobre o corpo. Membros trajando luvas aproximam-se dela, com os ganchos nas mãos. Dos olhos da Ruiva correm lágrimas, quando os dois primeiros artefatos são introduzidos na parte superior das costas. Filetes de sangue correm por seus quadris, quando o terceiro e quarto gancho são colocados acima das nádegas. Dois ganchos mais perfuram a parte posterior das coxas. Findadas as inserções, sorrisos brotam de seus lábios. Ela está pronta!

Seis membros agarram seis correntes e começam a içar a Ruiva. O elo terminal das correntes está conectado ao aço cirúrgico em seu corpo. Pouco a pouco vai ganhando altura. São cinquenta quilos de massa corporal dividida para os pares de braços. Quando a Ruiva atinge dois metros do chão, eles acoplam as correntes a presilhas no assoalho. Dark Clown começa a urrar o codinome pelo qual renascerá a jovem: “Angel Fire, Angel Fire...!”. Os demais repetem em uníssono: “Angel Fire!”. Do teto, Angel despeja lágrimas. O gotejar de seus olhos dura dez minutos, tempo coincidente com o período em que esteve “suspensa”.Atordoada pela emoção que a inflamava, a Ruiva nem sentiu quando os ganchos lhe foram extraídos. As chagas em suas costas, nádegas e coxas recebem assepsia imediata. Antes de fechados com curativos, os ferimentos foram massageados delicadamente, para que o ar acumulado deixasse a região. Depois que a garota livrou-se da ovação dos membros da Sociedade... Abordei-a e perguntei o que sentiu quando estava lá em cima: “não sei! É algo divino. Sinto-me de mãos dadas com Deus. Tenho uma satisfação imensa. É como fumar uns duzentos cigarros em alguns minutos”. A analogia feita por Angel era válida na visão de Clown: “a sensação é semelhante a que temos quando bebemos um cafezinho, fumamos ou mesmo coçamos o ouvido com cotonetes... Porém multiplicada. Tem a ver com grandes descargas de serotonina. É um orgasmo à enésima”.

Poderia aprofundar o cientificismo do relato. Discutir com psicanalistas as fronteiras entre o martírio corporal e o prazer. Contestar as assertivas de Dark Clown, sobre o regozijo de ter a camada dérmica trespassada por aço. Preferi ater-me à descrição do ritual, deixando de lado divagações eruditas. Foram meses de negociações com Spike e Clown, até o consentimento para acompanhar uma cerimônia da Sociedade das Correntes. Agarrarei com força a parcialidade, ainda que da boca dos membros saltassem certos verbos sem lastro. Não ousaria contrapor aqueles que me proporcionaram tamanho espetáculo.

Sobre o Escriba: tá pensando aqui... Em dar um tempinho nesses comentários no fim: pelo menos nessa fase de Contos. Até a próxima!


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Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.