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Bolacha recheada com privilégios

Se liberou a cloroquina, o Ministério da Curandeiragem poderia recomendar éter em vez de álcool gel. Fazendo-o, acrescentaria essência de morango e encharcaria minhas máscaras antes de usar. O momento pede entorpecência! Continue lendo a crônica do escritor-convidado Tiago Santos-Vieira.


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Bolacha recheada com privilégios

Se liberou a cloroquina, o Ministério da Curandeiragem poderia recomendar éter em vez de álcool gel. Fazendo-o, acrescentaria essência de morango e encharcaria minhas máscaras antes de usar. O momento pede entorpecência! Mas também podemos nos embriagar de solzinho matinal na varanda, com notebook aberto em home office. Tens essa regalia? Então guarde a língua na boca e não ouse blasfemar sobre os surtos do confinamento. Solte-a apenas para agradecer o santo motoboy que entregou seu almocinho em segurança. Sua segurança, não a dele.

Em detrimento do proletariado, é essa uma revolução do privilegiado. E que seja uma insurreição de novos valores, do despertar da gratidão... Para com o motoboy, a moça da farmácia, o frentista do posto e até com os médicos - casta classicamente privilegiada, que enfim fez valer o Juramento de Hipócrates feito na colação de grau.

Se por ventura tiver de deixar o trampo remoto, para cumprir funções in loco na empresa... Não saia distribuindo rabugices. Se proteja e vá. Chegando lá, agradeça ao porteiro, ao vigilante e ao faxineiro que passou alquinho gel na sua mesa. Se ficas quatro dias na varanda ensolarada, com notebook e xícara de chá a tiracolo, blasfemando contra aquele único outro dia em que precisa ir na firma... Seu anjo da guarda da faxina, que por imposição mercadológica é imune ao COVID, pegou ônibus lotado a semana inteira, só pra limpar a privada onde tu bostejas pensamentos: “Deus, que tô eu fazendo aqui me arriscando?”.

Se meus anticorpos permitissem, abraçaria essas pessoas. E já anteciparia desculpas, porque com certeza teci algum comentário ofensivo que eles desconsideraram - abrangendo minha insatisfação em furar a quarentena por imposições laborais, ignorando os privilégios que levo na mochila e eles não. É um ciclo escroto, onde me emputeço também, quando seres com mais regalias que eu defecam pelos cotovelos, reclamando das dores de ficar em casa e de ter que sair em situações muito mais específicas que as minhas.

Nessa hipótese, a única coisa que me vem à mente é: “por que raios de CNPJ, cargo ou casta social eu posso morrer e você não?”. Então relembro que, por questões sanitárias, estamos imperceptivelmente inseridos nesse ciclo escroto, e que também já fiz das minhas: “ei, ei, não precisa vir aqui, vou deixar as moedas na calçada e tu pega depois que eu entrar no carro, ok?”. That's me, gritando para o flanelinha sem máscara na rua, antes de passar álcool nas mãos e acelerar para um profundo estado de culpa, pelos atos horríveis que a pandemia nos obriga. Tenho mesmo muito o que aprender com o pessoal da faxina.

Contudo, se no looping de regalias que tornou-se o existir, chegarmos aos bate-bocas... Muito provável que diminuamos a distância no calor do momento, retirando máscaras para ofender com saliva. Fluído que inverteu a hierarquia biológica ao colocar humanos sob o jugo de um vírus. Se é para se arriscar assim, prefiro furar a quarentena na calada da noite, achar um muro e pichar: “enfia a cloroquina no c#”. Mas vá lá saber, se vão interpretar os dizeres como a palavra de um novo Profeta Gentileza. Demência, convulsão, arritmia cardíaca, cegueira. Os supositórios não nos deixam mentir, o ânus tem fortíssimo poder de absorção.

Pior que nesses tempos nem dá pra ficar em cima desse muro. Vai que nessa mesma noite de pichações o vírus evolua para algo que derrube as máscaras, fazendo-nos cair duro para a esquerda, ou, na pior das hipóteses, para a extrema-direita? Retroagindo, a melhor solução seria mesmo encerrar a discussão, mandando o privilegiado-mor pra casa do caralh#. Ainda que seja do caralh#, é uma casa, de onde nenhum de nós deveria sair nesse momento.

Sobre o autor: nascido na mitológica Caratinga (MG), Tiago Santos-Vieira fez voto de pobreza ao optar pelo Jornalismo (UFJF). Depois, trabalhou com periódicos em São Paulo (chegando a morar em um MOTEL). Foi um lapso temporal produtivo, com publicações nas revistas Rolling Stone, Trip/TPM, Riders e no Diário de Guarulhos. Fechado esse ciclo, voltou à Terra do Nunca, vulgo Caratinga, passando uma temporada trancafiado num quarto escuro. Quando viu a luz, fora aprovado em um concurso público e estava grávido de um livro. Foi então morar em Brasília, onde, após sanguinolenta gestação, pariu o suspense Elos do Mau Agouro. Torna agora a Minas, publicando o infantil As Aventuras do Super Careca e o suspense Dança das Bestas.



Tags

crônica


Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.