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Medo e Delírio em Brumadinho

A alvura dos azulejos lembrava um açougue em fim de expediente. É quando os carnífices largam as facas, munindo-se de escovas e água sanitária, fazendo escorrer pelo ralo sangue, suor e demais fluídos laborais. Mas ainda que exalando brancura hospitalar, o interior dos ladrilhos os denunciavam...


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Medo e Delírio em Brumadinho

A alvura dos azulejos lembrava um açougue em fim de expediente. É quando os carnífices largam as facas, munindo-se de escovas e água sanitária, fazendo escorrer pelo ralo sangue, suor e demais fluídos laborais. Mas ainda que exalando brancura hospitalar, o interior dos ladrilhos os denunciavam: partidos ao meio, por uma serra elétrica, jorravam na cara do espectador tripas, vísceras e toda sorte de entranhas.

Fica mais interessante quando trespassamos uma placa de acesso restrito, em meio à trilha na mata. As correntes junto ao aviso parecem cuidadosamente arranjadas no chão, como se fosse seta indicando caminho perigoso - porém atraente. Era como se a ferrugem da placa, em vez de tétano, transmitisse feromônios, capturando sentidos para que se perpetrasse o proibido.

A chuva molha as folhas, respingando no aparato plástico que trajava da cabeça aos pés. Eis que surge um colosso de concreto, fincado no aclive da relva, camuflado por trepadeiras e limo. Se houvesse outra placa a cuspir, não grafaria Perigo, Interditado, ou o tal Restrito. BioHazard adequar-se-ia. À penumbra, dentro da instalação, o risco biológico era na verdade psicológico. Na epidemia de medo, trocaria um braço por aquela serra elétrica.

Mil brotarão à direita, e outros mil cogumelos à esquerda. Coloridos, arrebentaram o chão no cessar da chuva e explodir do sol. Exausto, largado num gramado encaixado na lagoa... Observava champignons selvagens, implorando para serem devorados. Fome transmuta em delírio; e a árvore que contemplava se moveu!

Suspensa por extensões de aço, intentando que as raízes continuassem a crescer até reencontrar o solo. À distância, impactava com a ilusão de um sobrevoo. De repente, o caule magrelo que tocava o infinito começou a se contorcer, assim como as galhadas raquíticas que dele se projetavam. As próteses que sustentavam a árvore desfolhada se desprendem da terra. As pernas mecânicas bailam num passo fantasmagórico, marchando pelo gramado até sumir na mata.

Antes de entrar em letargia, dormindo com olhos abertos... As irmãs daquela árvore também arrancaram suas próteses do solo, seguindo-a na mesma cadência de brontossauro. A contemplação entorpecida interrompeu-se quando levei a mão à barriga, sentindo algo viscoso. Corri os dedos pela trilha de muco, dando com a fonte da gosma no peito. Baixando a vista, outros olhos, espetados em antenas, encaravam-me.

“Olá!”. Esperava tudo, menos o verbalizar de um caracol de concha arco-íris. “Fique tranquilo, nossa arte é imune a incêndios, ao descaso governamental e às cortes jurídicas”, completou a lesma. Senha para que despertasse do torpor, rumando ao sequestro de um carrinho de golfe. Dirigi até o cume do Instituto, onde uma redoma protegia um buraco 200 metros solo adentro. No orifício, descia um microfone até seu fim, conectado a alto-falantes na superfície. O som das profundezas filtrou do corpo resquícios alucinógenos. Tudo era real, na última obra apreciada no Museu do Inhotim.

Sobre o Escriba: disse que esse relato é livremente inspirado em parte de suas férias, imerso no Instituto Museu Inhotim, em Brumadinho (MG). Disse ainda que os cogumelos estavam deliciosos.


Tags

crônica, tiago santos-vieira, museu de inhotim


Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.