Sentir saudades daquilo que não se viveu… Sequela da lobotomia vintage a que somos submetidos diuturnamente. Parou pra pensar que um percentual considerável de nossas memórias são construídas? O carinho com que se assiste à “Stranger Things 2”, por exemplo… Não é condizente a quem nasceu na virada dos 80’s para os 90’s. Quem tinha dois anos em 1989, não é apto para comentários convictos sobre ombreiras enormes, polainas e mangas bufantes. Biologicamente e excluindo espiritualismos, nessa idade, inexiste cognição rememorativa para tal.
O escriba, por oportuno, não é nenhum jovenzinho, tendo seis aninhos em 89. Nas suas lembranças… Apenas a reprodutibilidade de filmes da Sessão da Tarde; e a posterior literatura almanaquista valorizando a “década perdida”. Feito um rasgo no espaço/tempo, digamos que o escriba “viveu os oitenta nos noventa”, achatando o nariz na TV. E também em 2000, consolidando memórias que não suas, ao devorar um “Almanaque Anos 80”, ganho de amigo oculto. Exercício último levado no beiral da depressão, quão saudosista esteve por algo que não lhe pertencia.
Em algum momento, o foco no futuro se transladou para o interesse em outrora. Assim, a memória virou remédio contra a ansiedade, provocada pela recente avalanche de mudanças. É como jogar um salva-vidas no passado, quando bate o pânico pelo que ainda está por vir. E nesse quadro fenomenológico, a mitologia dos anos 80 é perfeita àquilo que sempre está por trás de tudo: business, man! Ou você acha que os exageros nos looks de Charlize Theron, em “Atômica”, não foram propositalmente aparados? Sapatos, relógios e óculos revisitados para os nossos tempos, lapidando no filme a demasia conceitual oitentista, gerando um merchandising prêt-à-porter altamente comercializável.
É interessante constatar que o passado vende tanto quanto o futuro, com a estética classic e retrô solidificando o mercado da nostalgia. A reboque, a lógica capitalista vê potencial tanto na memória traumática política, quanto nas reminiscências do divertimento. Celebrizar a cusparada nos direitos humanos, por governos sul-americanos, é também um ótimo produto. Porém vindo a público em formato de seriado, encaixando na grade comercial da TV, como o global “Os Dias Eram Assim”. Ou mesmo evadindo às novas monetizações midiáticas, sob o jugo da Netflix e do latiníssimo “Narcos”.
Retomando… Orgástico o deleite visual promovido por “Atômica”. Ao mesmo tempo, é pavoroso ver que a Berlim 80’s – retrofuturista, cinzenta e implantada no imaginário do escriba – foi agora exatamente recriada para as telas. Fica mais horripilante ainda quando se olha para cadeira do lado no cinema, notando que a reconstrução também é familiar a outro, e mais outro, e por aí vai… Então, frente ao excesso de memórias, recomenda-se peneirar as lembranças usáveis das descartáveis. E talvez aceitar o conforto do comércio de passados, contragolpeando futuros que não nos transmitem confiança. Assim, nada mais cômodo que, sem culpas, assistir “Stranger Things 2”.
Sobre o escriba: Está ocupado agora, baixando “Bingo – O Rei das Manhãs”, que por alguma filhadaputagem ficou pouquíssimo tempo em cartaz. No mais… Abiscoitando uns concursos literários, publicando numas coletâneas, preparando um livro novo e ficando puto com o desrespeito dos cinemas às produções tupiniquins.
Leia também:A insustentável leveza do tem que se fudê prá aprendê!