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A Lei do Barbante

Dos tempos em que meu Avô era sano, não me foge da cabeça suas histórias sobre Fajardo Dantas. Um famigerado município onde tudo se resolvia no fio do bigode, no gume da faca e no festim da carabina. No lugarejo duns mil habitantes...


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A Lei do Barbante

Dos tempos em que meu Avô era sano, não me foge da cabeça suas histórias sobre Fajardo Dantas. Um famigerado município onde tudo se resolvia no fio do bigode, no gume da faca e no festim da carabina. No lugarejo duns mil habitantes... Não se fazia nada além de trançar cordilhos de Ceretê - fibra vegetal parecida com o sisal. As escaldantes temperaturas, combinadas com o solo pobre, faziam com que brotasse apenas Martiquerona em Fajardo. O arbusto, matéria prima do Ceretê, regia o espectro da paisagem: partia do cinza, passando pelo bege, morrendo no vermelho-sangue.

Naqueles confins resiste uma tradição medieval. Casamentos podem ser conseguidos com o dote. Os patriarcas campesinos não hesitavam em entregar suas filhas por uns 200 novelos de Ceretê. Um metro de cordilho é vendido aos atravessadores por 25 centavos, que repassam às grandes feiras da capital. Lá, novelos de 10 metros servem ao artesanato. Os valores parecem insignificantes, mas a lógica é selvagem quando se calcula o dote - o Ceretê é indicador financeiro das negociatas matrimoniais. Fazendo as contas, por 500 reais se desposa uma donzela em Fajardo. Por Ceretê se casa e também se mata. O baixo faturamento dos campesinos despertam instintos animalescos. Discussões entre empregado e empregador, companheiros de labuta, familiares... Costumam ter o mesmo fim: a morte.

Em companhia de um cachorro meio-cego no ponto de ônibus, recobrava-me de 17 horas de viagem. Vislumbrei na paisagem uns barracões, uma capela e um campo de futebol. Então... Surpreendo-me com uma funesta situação. Olhei para o cachorro e ele retribuiu com seu olho furado. Tínhamos o mesmo ar interrogativo. Um cortejo acompanhava o Padre, rumando a cruzes amontoadas atrás da capela. Cumpri a distância até o cemitério. Com o gravador oculto no bolso, assuntei com os presentes sobre o velório. Raimunda Medina era irmã do morto. Dos familiares, era a menos chorosa. Relutou antes de falar. Também pudera: de uma hora pra outra surge um forasteiro, perguntando a causa mortis!?!

Sob olhares dos que foram levar condolências, Raimunda desaguou: “meus irmãos nunca se deram bem. Silézio e Sinval, quando moços, discutiram por uma meninota e não voltaram às boas. Sinval montou um açougue e Silézio não era dos melhores pagadores. Tinha um litro de cachaça pendurado em cada buteco. No açougue eram uns 20 quilos de bode! Mês passado Silézio prometeu pagar o que devia a Sinval com barbante. Aí veio essa seca desgraçada e acabou com tudo, inclusive com a vida do meu maninho”. Silézio apareceu no açougue pedindo mais prazo para as dívidas. Segundo Raimunda, as últimas horas do irmão se deram assim: “começaram a discutir. Sinval tava desossando um cabrito e rasgou o bucho do irmão com a mesma faca. Os bofe de Silézio caíram no chão e Sinval ficou vendo ele sangrar”. Ao final do relato, ela enxugou a última lágrima: a gota d’água! Assumi minha inconveniência, era hora de encerrar. Pós “entrevista”, a irmã do defunto recomendou-me uma pensão perto do meretrício. Deveria procurar Manoelão Pereira, proprietário e seu contraparente.

Antes de chegar à pensão, fiz um tour por ruas de chão batido. Na boca do anoitecer, deparo-me com Manoelão às portas de seu estabelecimento. Recebeu-me com desconfiança: “então é você o forasteiro. Se for um ‘da lei’, que voltou pra terminar o que começaram... Espalha isso pro povo! Tá todo mundo com medo, querendo saber quem é o moço. Só te deixo ficar se abrir o jogo!”. Como exigido, disse-lhe que “não era da lei. E sim um Jornalista, que resolveu passar a limpo as histórias de seu avô”. Manoelão julgou perigosa minha investida: “o povo aqui, inclusive os graúdo, são ignorante. Jornalista só aparece em época de campanha, comprado pela família Nagib, que toma conta da prefeitura há cinquenta anos. Se não veio a mando do Prefeito, não é bem vindo em Fajardo”.

Horas de conversa com Manoelão o fizeram amolecer. Ainda mais na companhia de uma branquinha. Sobre os da lei, disse que eram Policiais de fora, que vieram investigar sete assassinatos ocorridos em uma semana. Era impossível competir com ele. A cada dose que eu virava, Manoelão jogava cinco pra dentro. Às tantas, o álcool bateu forte e ele abriu o bico: “foi tudo a mando do Prefeito. Os sete deviam uma dinheirama pra ele. O Prefeito deu cabo de um a cada dia da semana. Os Polícia vieram aqui e interrogaram a cidade toda. Ninguém viu, nem sabia de nada. Fiquei com a língua nos dente, mas tive medo. Esses cana vão embora e eu fico. Ia ser o oitavo na lista do Prefeito”. Manoelão não soube explicar de onde eram os Policiais. Dias depois, longe da cidade, entrei em contato com o Delegado encarregado, que não quis se pronunciar.

Sobre o assassinato em família, Manoelão opinou: “não tiro a razão do Tio Sinval, só acho que foi exagero. O Tio Silézio merecia uma surra, era mesmo um caloteiro. Agora, matar? Aí tem coisa moço! Tio Sinval tá na cadeia, mas amanhã tá solto. Tudo aqui em Fajardo Dantas é assim: quem tem Ceretê manda prender, soltar e matar. O açougue do Tio Sinval dava renda. Mas todo mundo sabe que ele era atravessador na negociata do barbante. Tão falando que Tio Silézio morreu por conta da dívida no açougue. Moço, ele devia pra cidade toda! Certeza que encomendaram a morte de Silézio. E foi o irmão que aceitou o trabalho. A bebedeira com Manoelão findou em um convite para esticar no meretrício ao lado (o qual dispensei); e com a seguinte recomendação: “desapareça no amanhecer. Essa diária é uma cortesia pela boa prosa. Vá antes que os graúdo cheguem no seu encalço. E cuidado com o que vai escrever. Fajardo é pequena, mas os graúdo tem Juiz, Deputado e até Ministro no bolso”.

Recostei em um dos quartos da pensão até o sol raiar. Procurei por Manoelão e descobri que dormira na casa da luz vermelha. Sete da matina, no marco zero da expedição pelas memórias de meu avô... Avistei o ônibus surgir em meio à poeira. Acomodado na poltrona, divagava em voz alta: “existe sim um faroeste caboclo!”. Tonto, botei a cabeça pra fora da janela, esperava que o vento afugentasse a ressaca. Brisa no rosto, olhar perdido na paisagem que ficava pra trás... E vi o ilustre fajardense que fez as honras quando aportei por ali. O cachorro meio-cego, apesar da distância, parecia fitar-me com seu globo furado - olho que não fazia vista grossa aos graúdo da cidade.


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Escrito por

Tiago Santos-Vieira

Escritor e jornalista; é autor dos livros Dança das Bestas, Elos do Mau Agouro e As Aventuras do Super Careca. Foi colaborador das revistas Rolling Stone, Trip/TPM e é brother da Chico Rei.