Arriscaria o marco zero na infância, algo aconteceu ali. Ou talvez a genética contribuíra. O fato é que algum fenômeno psicoquímicosocial desarranjou-lhe os neurotransmissores, descompassando as sinapses cerebrais. Tudo isso o faz entender o mundo pelos seus próprios códigos, lutando para se enquadrar no que é dito normal. Ansiedades, pânico, fobias, pensamentos redundantes. Tamanho esforço para se encaixar trouxe efeitos colaterais a tiracolo - e ausência de pudor em assumir que essa crônica é sobre quem vos escreve.
Não precisa ter peninha, dispensa-se a compaixão. Ficaria é muitíssimo satisfeito caso role identificação. Tinhas dificuldades em exatas na escola, alternado com requintes de genialidade em outros conteúdos - e por tal motivo, a falta de sensibilidade dos mestres/instituição o faziam desacreditar em si mesmo? Por um desses mestres, foste literalmente chamado de burro? Despertando revolta a ponto de ressignificar a matemática, a física e a química, reentendendo-os à sua maneira, repercutindo em aprovações nos vestibulares que os coleguinhas almejavam.
Em caso afirmativo, desapegue do rancor. Por força da “nossa condição”, já há sentimentos colaterais em demasia para lidarmos. Seria capaz até de ser grato aos que aplicaram inconscientes chutes na bunda, impulsionando o entendimento particular de mundo que só hoje se revela. Compreensão essa que permite, 20 primaveras depois, apenas enterrar tamanho despreparo pedagógico. Ainda que nada justifique um educando ser chamado de burro. Mesmo que por um educador oriundo da geração que normalizava o bullying.
E tome relacionamentos desmanchados, porque seus filtros afetivos são intensos demais, ao mesmo tempo que relapsos para as exigências legais/sociais de uma união. Até aquele momento em que encontras uma alma psicologicamente gêmea, “te gostando” do jeitinho que és. Ou que não encontre, se preenchendo de si mesmo e estando perfeitamente resolvido com isso. E tome amizades arranhadas, porque seus convivas de infância te cobram periodicidade, onde você só consegue oferecer intensidade: “mano, num me chama de sumido, Ok!? E aceita que, quando nos encontrarmos, vai parecer a época que matávamos aula na locadora de videogames”.
Mas até assumirmos nossa síndrome de Gabriela, muita energia é gasta em tentar se enquadrar pra agradar. Parecer adequado ao comportamental da maioria é diretamente proporcional ao consumo de ansiolíticos/horas de terapia. Sendo que matematicamente a expressão se equalizaria apenas em cantarolarmos a plenos pulmões: “Eu nasci assim, eu cresci assim; Eu sou mesmo assim; Vou ser sempre assim; Gabriela, sempre Gabriela”. A pérola de Caymmi é talvez o maior FODA-SE da MPB.
Música: traduzia-me o mundo para os códigos que conseguia entender, seja escutando, tocando ou grafando sobre. Como dito, outro sintoma da percepção particular do existir é a excelência em algumas áreas, compensando o déficit noutras. Juntando vocábulos e acordes, consegui enfim construir uma ponte com a realidade, escrevendo para revistas especializadas em... Música! Foi quando me apaixonei por Ian Curtis. Para não estragar a imagem que criei do vocalista do Joy Division, fugia de Control, sua cinebiografia. Ledo engano. Quase 15 anos depois venci a paúra, maravilhando-me com o preto e branco da película.
Tons esses que traduziam a frieza de um lugarejo na Terra da Rainha, onde o semi-adolescente Ian contraiu matrimônio, teve uma filha, descobriu sua epilepsia e entupiu-se com coquetéis de medicamentos experimentais. Ao se deparar com uma jovem portadora do mesmo, vestida com um capacete de rúgbi por temer quedas durante as crises... Ian colapsou-se mentalmente e partiu aos 23. Trágico, se não captarmos a mensagem subliminar do longa-metragem.
Bombardeado por avalanches de infortúnios, o que também lhe colateralizava compreensões particulares do existir... Ian Curtis decodificou a vida usando a música como filtro e combustível - mesmo que temesse os palcos, antevendo crises que realmente ocorreram durante os shows. Talvez o calor e a cor dos trópicos prenderiam Curtis por mais tempo neste plano. Cores tão berrantes quanto as camisas do mutante Arnaldo Baptista, com quem eu encontrava regularmente antes da pandemia.
Caminhávamos na mesma pracinha aqui perto de casa. Fazia o percurso em sentido contrário, só para cortar frente a frente com Arnaldo. Eram tempos sem máscaras, e a cada vez que nos cruzávamos, desmanchava-me em sorrisos. Ele entendia o recado, devolvendo enlouquecidas gargalhadas. Um sonoro dialeto gestual grafado em hieróglifos - língua falada apenas por quem habita universos particulares.
--
Sobre o autor: nascido na mitológica Caratinga (MG), Tiago Santos-Vieira fez voto de pobreza ao optar pelo Jornalismo (UFJF). Da miséria, passou à escravidão voluntária, trabalhando com periódicos em São Paulo (chegando a morar em um MOTEL). Foi um rasgo temporal produtivo, com publicações nas revistas Rolling Stone, Trip/TPM, Riders e no Diário de Guarulhos. Fechado esse ciclo, voltou à Terra do Nunca, vulgo Caratinga, passando uma temporada trancafiado num quarto escuro. Quando viu a luz, fora aprovado em um concurso público e estava grávido de um livro. Foi então morar em Brasília, onde, após sanguinolenta gestação, pariu o suspense Elos do Mau Agouro. Torna agora a Minas, publicando o infantil As Aventuras do Super Careca e o suspense Dança das Bestas. Siga o Autor: @santosvieiratiago